sexta-feira, 28 de maio de 2010

O MENINO DE VESTIDO

Pedro nasceu no mesmo dia em que sua irmã completava três anos de idade. Tudo devidamente planejado por seus pais desde o momento da sua concepção. Paulo, se você se soltar hoje o bebê nasce pertinho do aniversário de Clara. O marido, que já havia manifestado o desejo de tentar um menino, e prevendo algum tipo de economia naquela situação, relaxou e gozou.
 
Ana Clara acreditou que Pedro era o seu presente, uma nova boneca; tanto que Dona Maria tinha de ficar atenta a qualquer som que o filho fizesse, assim como ao eventual silêncio da filha; e por diversas vezes a flagrou trocando as roupas do neném pelos vestidinhos antigos ainda guardados na última gaveta da cômoda.
 
Doutor Paulo, que havia alcançado o ápice da sua felicidade com o nascimento do varão, foi aos poucos, desapercebidamente, se afastando do filho que preferia brincar com a irmã de vestir bonequinhas a ir lá para fora com suas bolas e pipas. Demonstrava profunda tristeza cada vez que se via forçado a retirar o vestido e o batom do garoto. Ele sabia que era traquinagem da filha, mas sentia que o menino fazia gosto.
 
Sempre com muito serviço para terminar e reuniões para comparecer após o expediente, não insistiu com Pedro o tanto o quanto mais tarde lamentaria. Distanciou-se tanto de Pedro que acabou se afastando de toda a família até separar-se de vez de Dona Maria. Casou-se alguns meses depois com Joseane, sua estagiária na firma. Tiveram um menino e mudaram-se para São Paulo, onde  Paulo foi convidado a assumir a direção da empresa. Seu contato com os filhos do primeiro casamento resumia-se aos telefonemas no dia do aniversário e na noite de natal, muito mais por obrigação do que por verdadeira vontade, saudade nunca sentiu.
 
Clarinha desde cedo solidarizou-se com a mãe. Ajudava na organização da casa e na educação de Pedro; muitas vezes, unindo as duas funções, passava algumas tarefas domiciliares ao irmão e supervisionava o bom andamento do serviço. Sem perceber foi também moldando e consolidando a sua formação como uma pessoa independente, responsável, articulada, determinada e exigente. Gostava de trabalhar em grupo e possuía uma enorme capacidade de liderança. Por ironia do destino, herança genética ou vontade inconsciente dela própria, tornaria-se a mais jovem sócia e diretora de uma poderosa firma; advogada assim como o pai.
Dona Maria não teve muito tempo para lamentar a perda do seu grande amor, pois havia de cuidar da formação de seus dois filhos e, mesmo contando com a pensão do Doutor Paulo, que nunca falhou até Pedro completar a maioridade, lecionou os estudos sociais e as ciências na Escola Municipal Ary Barroso até ver Pedro formado em letras pela Universidade Federal, quando pôde então, finalmente, aposentar-se. Não se casou novamente e nem se sabe de outro homem em sua vida. Se não foi feliz no amor, também não se pode dizer que foi na vida uma pessoa triste, pois os filhos lhe foram sempre motivo de orgulho e alegria.
 
Pedro Emanuel tinha oito anos quando o pai saiu de casa. Já não corria de vestido pela casa e passou a ser disputado no meio de campo dos times da escola. Jogador voluntarioso, firme na marcação, não tinha medo de bola dividida e possuía criatividade acima da média na armação das jogadas. Lembrava o Falcão, figura de destaque da seleção nacional daquele mesmo ano. Doutor Paulo nunca soube disso. Já não brincava mais de casinha com a irmã, mas ainda eram muito unidos. Mesmo quando Marta, melhor amiga de Clara, estava pela casa, ele ficava ali por perto e até arriscava algum palpite na escolha de sapatos, bolsas e jóias. Não é que você tem bom gosto? Surpreendia-se, Marta.
 
Aos treze anos Pedro começou a ser observado pelas meninas da classe e pressionado pelos colegas mais próximos. E aí, vai ou não vai sair com a Claudinha? Pedro arriscou alguns beijinhos e carícias, estava até gostando de toda aquela descoberta quando, um evento, numa tarde de chuva forte, o fez refletir pela primeira vez num assunto que o atormentaria por toda a vida.
 
Sem ninguém em casa para conversar, o adolescente resolveu ajudar em alguns serviços domésticos, e o primeiro que lhe veio à lembrança foi o de retirar a roupa limpa da corda por causa da chuva. Pedro recolheu tudo rapidamente e começou a separar em sua cama o que era seu. Retirou do balde, onde pusera todas as peças, uma calcinha de renda preta de sua irmã. Ao tocar aquela roupa íntima, tão feminina e sensual sentiu o corpo todo gelar e um incontrolável desejo de experimentá-la. Teve uma enorme dificuldade de colocá-la, pois suas pernas eram bem mais grossas que as de Clara, certamente por causa do futebol; além de outro obstáculo peculiar à sua natureza masculina, mas, por fim, conseguiu. Correu para o espelho e vibrou. Sentiu uma imensa felicidade lhe preencher a alma. E, entre uma partida e outra de futebol, um namoro e a escola, sempre que surgia a oportunidade, vestia as peças íntimas da irmã.
 
Nunca ninguém desconfiou da opção sexual de Pedro, nem em casa, nem na rua, mas, vez por outra, ele mesmo se pegava admirando algum colega, chegando até a fantasiar algumas situações em sua mente. Isso tudo o perturbava bastante; como se não bastassem todas as outras aflições adolescentes pelas quais ele já passava.
 
Certo dia foi surpreendido pela notícia de que Clara arrumara estágio numa grande empresa e iria mudar-se para outro bairro dividindo apartamento com mais duas amigas da faculdade. Ficou desesperado sem saber o que fazer; iria perder ou se distanciar bastante de sua melhor amiga, e neste momento a figura de Marta foi fundamental. Parece que ambos completavam em um e em outro o vazio deixado por Ana Clara. Não demorou muito para que aquele sentimento de amizade se tornasse curiosidade, desejo e tentação. Poucos casais de namorados se entendiam tão bem quanto aquele ali formado por acaso, pelo destino de Clara.
 
Marta, dois anos mais velha que Pedro, porém apenas um à frente na faculdade de letras, começou a trabalhar como professora seis meses antes de se formar, e Pedro, seguindo o mesmo caminho, já estava com a vaga garantida em duas escolas nas quais já estagiava. Daí para o casamento foi um pulo. A Doutora Ana Clara, já uma advogada de renome, era a mais emocionada na cerimônia e foi quem mais curtiu a festa. Dona Maria também estava radiante, não só pelo filho como também por sua recém conquistada aposentadoria. Doutor Paulo não compareceu, apenas mandou um cartão de felicidades que veio com um moderno forninho de microondas, item 23 da lista de presentes que estava na loja virtual do Ponto Frio.
 
Os primeiros anos de casamento foram mornos; nem frio, pois o carinho mútuo era transformado constantemente em paciência, dedicação e cumplicidade; nem quente, pois não havia aquela paixão arrebatadora de nenhuma das partes. Mesmo assim, em menos de quatro anos de união, já havia tido dois meninos o afortunado casal.
 
O sucesso na carreira e a alegria de uma família estruturada não faziam Pedro se sentir realizado e completamente feliz. Faltava-lhe algo para preencher verdadeiramente a sua alma. E com o passar dos anos isso começou a incomodar cada vez mais o já quase quarentão rapaz. Apesar de nunca mais ter vestido roupas femininas ou de ter fantasiado aventuras com outros homens em seus momentos mais íntimos, lembrava bem da sensação que o estremeceu dos pés à cabeça quando colocou pela primeira vez a calcinha preta da irmã, e isso ainda o incomodava e perseguia. Será que fiz a escolha certa? Será que não me sinto realizado por estar indo contra a minha própria natureza? Vou passar a vida toda frustrado por ter inibido os meus mais profundos sentimentos? E se eu morrer amanhã? Aproveitei realmente a vida? Neste mundo de reflexão, angústia e dúvida Pedro foi ficando cada vez mais triste até murchar de vez, deixando a Marta cada dia mais preocupada. A dedicada esposa perguntava, alfinetava, acarinhava, mas ele desconversava.
 
Um dia, na academia, ao ter contato com um jovem e atencioso professor de educação física, Pedro ficou radiante, parecia que uma luz, uma força divina havia se apossado do seu corpo, fazendo com que ele partisse para casa determinado a se libertar de uma vez por todas das algemas de sua própria consciência.
 
Nunca houvera briga ou discussão entre o casal e naquele dia também assim o foi. Marta ouvia tudo atentamente, estava em completo estado de choque. Não entendia nada do que Pedro, com o maior carinho e precaução, tentava em vão explicar. Ele dizia que isso era uma história antiga, que não tinha nada a ver com ela, que a amava e que morreria pelos filhos. Marta nada compreendia, porém percebendo que o marido estava realmente diferente, mais vivo, com certo brilho na alma e no olhar, resolveu então tentar fazê-lo feliz.
 
Ficou decidido que o melhor seria Marta mudar-se com as crianças para junto de Dona Filó, sua mãe, viúva há mais de cinco anos e que estava começando a ficar debilitada. O casarão era espaçoso, vários cômodos e bem mais perto da escola dos meninos.
 
Pedro ficou na casa e apesar dos diversos vestígios de uma família outrora feliz: retratos espalhados por toda a casa, quadros feitos pelas crianças nos corredores, o quarto dos filhos aberto com brinquedos espalhados e as camas prontas para recebê-los a qualquer hora; insistiu em receber Jorge Miguel ali naquele ambiente, não iria esconder mais nada de ninguém, principalmente dele mesmo.
 
O jovem professor chegou trazendo um vinho. Pedro acabara de escorrer o espaguete e de apagar o fogo do molho especial, receita de Dona Maria. Abriram a garrafa e conversaram bastante sobre tudo, até mesmo sobre futebol. Jantaram e terminaram a noite consumando um fato que durante anos atormentou a cabeça do jovem Pedro Emanuel. Miguel despediu-se. Pedro o levou até a porta, apertou-lhe a mão, voltou para a cama e chorou como criança até adormecer, já com a chegada dos primeiros raios de sol. Acordou com uma incrível ressaca de consciência, com vergonha de todos, dos filhos, de Marta, de Dona Maria, de Miguel, de si próprio, só não pensou no pai, mas isso também não importa. O importante é que Pedro não achara a felicidade que tanto procurava, pelo contrário, até o prazer físico do ato era bem melhor com Marta, e ele não entendia mais nada.
 
Vagou pela casa durante toda aquela tarde de sábado. Chorava, deitava, andava, sentava e voltava a chorar, quando, de repente, se deparou com um vestido azul turquesa, lindo, que Marta havia esquecido atrás do cabideiro. Lavou o rosto, fez a barba, tomou banho e raspou as pernas. Colocou o vestido com o maior cuidado do mundo, olhou-se no espelho e encontrou subitamente aquilo que havia procurado a vida inteira. Aquela antiga sensação de completa realização, onde o ser por si só se basta. Saiu para a rua de braços dados com a felicidade.

Antes de fechar a porta atrás de si lembrou-se do pai, Doutor Paulo, correndo pela casa, bufando e tentando fazê-lo tirar o vestido.

5 comentários:

Elika Takimoto disse...

Nelson,

esse conto é um troço de louco. Ele é leve e muito profundo. O final? Supreendente, meu caro.

Diversão e cultura garantida!

Beijos

Anônimo disse...

Meu amigo seu blog é not°10, show, espetacular desejo muito sucesso em sua caminhada e objetivo no seu Hiper blog e que DEUS ilumine seus caminhos e da sua família
Um grande abraço e tudo de bom
Ass:Rodrigo Rocha

Jackson disse...

Nelsinho

Confesso que o meu machismo encontrou certa dificuldade com o texto já que por vezes inconscientemente me coloco no papel do protagonista quando leio algo tão interessante, mas fico realmente impressionado com a sua capacidade de criar e virtudes literárias.
Parabéns

Mazinho

Nelson Borges disse...

Obrigado Rodrigo,
pela visita e pelo elogio.

E Maza,
não se preocupe, é tudo ficção, sei que você está livre desse "mal",
:-)))
abraços.

Unknown disse...

Depois da primeira frase não tem mais como parar de ler.
Abç!