quinta-feira, 23 de abril de 2009

NA VEIA, DE UMA SÓ VEZ

Sempre que vamos a Miguel Pereira passar um final de semana prolongado com os amigos, saio de Madureira em direção ao Irajá para posteriormente pegar a Via Dutra. Um pouco antes de deixar Vaz Lobo para trás passo em frente a minha antiga escola, o Colégio Republicano, aquele todo verde com detalhes brancos na esquina da Monsenhor Felix com a Carolina Amado.

E, enquanto vou passando os olhos pelo antigo portão de ferro, informo à família:

- Foi aqui que eu estudei do C.A. à sexta série.

Minha querida companheira de longa data e de tantas idas a Miguel Pereira não se manifesta mais. Meus queridos filhotes, como se tivessem combinado anteriormente, rebatem num som único.

- Já sabemos pai! Você sempre fala isso.

Eu até gosto desta constatação coletiva, na verdade ela faz parte de um ritual, se posso assim chamar, de retorno nostálgico a um passado remoto muito vivo ainda no meu pensamento e no meu coração.

Minha família não sabe, mas durante aqueles poucos segundos em que avisto a velha amendoeira, declamo minha fala e vou deixando o antigo muro verde para trás, um bombardeio de lembranças e de emoções alcança o meu pensamento.

Não é que eu pense, nestes poucos segundos, em cada buraco ou imperfeição daquela calçada por onde centenas de vezes, perdido em devaneios, passei a caminho de casa ou da escola; ou na bandeira brasileira sendo estiada enquanto um Nelson ainda menino entoava forte e orgulhoso, ou apenas de pura algazarra, os versos do nosso hino pátrio; ou nas ásperas aulas de matemática do professor Magalhães, já me despertando, naquela época, para a magia dos números; ou no rachão da hora do recreio que foi proibido por causa do estado em que chegavam os atletas na sala de aula após o toque do sinal, situação essa que foi devidamente contornada - a da proibição - com a simples troca da bola de borracha, que passou a ficar retida na secretaria, pelas amêndoas que já se encontravam ali na quadra aguardando apenas por seus jovens amigos e algozes. Amigos porque alguns dos meninos tinham tamanha destreza no trato e no controle da substituta, e algozes porque outros de nós, já não tão íntimos desses malabarismos, por vezes acabávamos por partir em diversos pedaços a fruta em questão.

Tinha o Pierre, pele negra, cabelos castanhos corridos, era uma figura que destoava no meio da criançada, que só foi entendê-lo quando a professora de estudos sociais explicou as misturas étnicas que deram origem ao mestiço povo brasileiro. Meu amigo era um belo exemplo de cafuzo; e como corria o moleque. Pierre corria tanto que era o preferido dos professores que esqueciam algum material no escaninho, daí, um cometa negro, essencialmente brasileiro e em forma de menino varava os corredores estreitos e vazios da velha escola.

Tinha o Marcelo Maciel, amigo e companheiro de estudos. Marcelo foi quem me ensinou pacientemente a amarrar o kichute, calçado padrão daquela geração, com o laço que até hoje uso para amarrar os meus tênis, e que já deixei de herança para a minha filhinha que desde cedo se mostrou interessada em se virar sozinha.

Tinha o João Henrique, meu amigo gordinho, sócio nas confusões e na merenda, que dividia comigo o seu leite com Sucrilhos recebendo em troca metade do pão com goiabada que minha mão havia preparado.

Tinha o Alexandro Valente, o Fernando, o Álvaro e outros tantos que hoje só revejo nas antigas fotografias do Colégio, só que eles ainda estão com dez anos, assim como eu, ali parado ao lado deles, posando para o registro eterno de uma época maravilhosa.

No meio de tantos nomes de meninos, alguns já sem rosto em minha memória ou com a imagem bastante borrada pela força dos anos, me surge, repentinamente, um nome de menina, Ana.

Ana Paula era bem miudinha, a mais baixinha, a primeira da fila, a menor da turma, mas era linda, pele clara como o mármore da escada, cabelos negros como o meu guarda-chuva que um dia, numa chuva de vento, envergou ao contrário e quebrou de vez, e uns olhos quase azuis, como o mar quando está... Quase azul.

Não sei se posso dizer que Ana Paula foi o meu primeiro amor, pois não lembro de ter trocado nenhuma palavra com ela; mas lembro de um certo dia em que percorri um caminho totalmente diferente, exatamente oposto ao que fazia todos os dias, apenas por instinto, ou sei lá o que, seguindo Ana Paula até ao portão de sua casa que ficava bem aos pés de um morro ali próximo.

Ela não me percebeu, é claro, porém nesse dia voltei com a cabeça erguida, todo orgulhoso, como se tivesse finalmente roubado aquele beijo tão sonhado naquele portão que antes só existia no meu pensamento e que a partir daquele momento teria cores e detalhes mais vivos nos meus sonhos. Eu havia enfrentado um medo. O medo de ultrapassar aquela fronteira e de ir de encontro ao desconhecido, ao inimaginável. Havia perdido para sempre o medo do novo.

Todas essas sensações e imagens descritas não são conscientemente pensadas naqueles poucos segundos em que exclamo para a minha família que estamos passando na frente da minha antiga escola; elas são injetadas na minha veia, de uma só vez, onde sinto uma alegria completa, talvez por estar passando bem na frente de uma época maravilhosa em que minhas maiores preocupações se resumiam em chegar ao portão do colégio. Tanto para entrar quanto para sair.

Um comentário:

André Luiz disse...

Pow... viajei nesse texto...

Muito Show!!!

Um abraço!!